domingo, 26 de outubro de 2008

Distraída

Disse hoje de mim para mim:
Que dia é hoje? Que mês? Que ano?
É Janeiro, oitenta e três, vinte e tantos...Suponho...
Que eu, às vezes, nem sei às quantas ando...
Mas ralar, eu não me ralo,
Porque o tempo vai passando
Mesmo que eu não queira,
O tempo vai passando
De qualquer maneira.
E se passou o tempo! Se passou...
Foram cinquenta anos já passados
E vividos, vividos a viver,
Sem amargura e sem saudade
Porque os vivi a valer.
Não tenho pena das coisas que passaram
E que não me agradaram. Já as esqueci.
As boas, essas, estão comigo
Porque as vivi.
Agora mais do que nunca quero viver
Quero dizer que sim à vida
Todo o dia, todo o mês e todo o ano.
E não me importo que digam que estou velha
Porque eu não estou
Porque eu não quero.
Fico nos cinquenta só
Mas não me esquecerei todos os anos de fazer anos
Porque eu sou distraída
E às vezes esqueço-me
Que já sou Avó!

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Pregões

Quando somos crianças, os sons musicais parece que nos entram no ouvido de tal maneira que, mais tarde, ainda os conseguimos cantar e ouvi-los distintamente naquele cantinho da memória a que eu chamo a "sala de música".
Quando eu tinha 3 anos, morava na Rua da Senhora da Glória, à Graça, e os pregões que soavam nas ruas de Lisboa eram sonoros, musicais e traziam uma melodia inesquecível, mas ao mesmo tempo simples e cheia de ternura.
Era o caso do queijo saloio, dos morangos de Sintra, e de um que só se ouvia no princípio da Primavera, que era o do homem que recolhia as cascas das ervilhas e favas e os restos das hortaliças. O pregão era assim:
"Olha a carroça, que leva as folhas, que leva as cascas!"
Só que, por mais que eu procurasse, ele não trazia nenhuma carroça, nem sequer um burro. Era ele que, simplesmente de saca às costas, recolhia os restos que os outros deitavam fora, talvez para alimentar coelhos e outros animais de criação.
A graça está na figura simbólica da carroça, que, pura e simplesmente, não existia...
Também aparecia sempre, ao fim da tarde, um outro homem que apregoava "suspiros de alimança". Isto criou lá em casa um mistério: o que seriam os "suspiros de alimança"? Suspiros sabíamos que eram os tais bolinhos que deixam na boca o sabor de uma ilusão breve que se extingue, agora a "alimança"...O que seria?
Um dia a minha Mãe ouviu com mais atenção e descobriu que o pregão completo era "Suspiros de alimão são a um tostão". Estava desvendado o mistério dos "suspiros de alimança"...

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Do mal o menos ou a história do milagre do Senhor da Piedade

Eu fui, durante anos a fio e desde muito pequena, às festas do S. Mateus, em Elvas. Por ocasião da feira, em Setembro, também se celebravam as festas do Senhor Jesus da Piedade, cuja igreja fica no recinto da Feira. A capela é muito antiga e tem um anexo chamado "a casa dos milagres", onde se guardam as promessas dos fiéis e entre braços e as pernas de cera e as fotografias, há os chamados ex-votos.
Ora entre os muitos ex-votos que cobriam as paredes, o meu pai descobriu uma pintura do século XVIII, que representava uma estrada uma carroça e um homem deitado no chão; por baixo, a seguinte inscrição:
"Milagre que o Senhor da Piedade fez a Braz António, ao qual passando-lhe uma carroça por cima, lhe partiu uma perna, podendo-lhe ter partido as duas".
Assim, tal e qual.