quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Os combatentes

No final dos anos 30, num Lar para veteranos militares, ainda viviam uns quatro ou cinco ex-combatentes da Guerra de 1914-1918. Eram todos medalhados, mas já desmemoriados e doentes. O capitão Pina, o alferes Vieira e o cabo rancheiro Pedro são dos que me lembro melhor.
À noite, reuniam-se no salão para ver jogar partidas de xadrez, ping-pong e bisca. O capitão Pina arrastava os pés e sentava-se a um canto, longe de tudo e de todos.
O alferes, que usava uma viseira no olho direito, era um filósofo, e não raro fazia grandes discursos invocando e elogiando a fundadora do Lar, a Princesa D. Maria Francisca Benedita, misturados com citações de filósofos gregos e impropérios contra o Governo da altura.
O cabo Pedro andava de cadeira de rodas, pois tinha ambas as pernas amputadas; mas era o que tinha melhor memória e a Batalha de La Lys era uma constante recordação, pois lá tinha sido gravemente ferido, o que levou à amputação das pernas.
Eram os sobreviventes de uma guerra longínqua, dramática e que, como diria o alferes Vieira, não tinha melhorado o mundo. Como todas as guerras: dispensáveis, diria eu...

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A remonta

Há muitos anos, o exército português ainda não era motorizado. Tinha cavalos e muares, que eram comprados a civis, mais propriamente a criadores de gado do Alentejo. Uma vez, um oficial de uma unidade foi encarregado de ir fazer a remonta, que era precisamente a escolha e a compra das montadas. O lavrador que que lhe vendeu os animais recebeu-o no monte e tratou toda a gente principescamente: boa comida, bom vinho e bom alojamento. Findo o negócio, no jantar de despedida, o oficial ( um tenente-coronel), quis fazer um discurso de agradecimento, mas o dono da casa virou-se para ele e disse-lhe:
- Ó Sr. tenente-coronel, coma-lhe e beba-lhe deixe-se de alarvices!
...O bom povo alentejano!

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

4 contos

Eram dois irmãos, mas, sobretudo, eram dois amigos. O mais velho era casado com uma mulher mais que forreta, doentiamente agarrada ao dinheiro. O mais novo vivia com dificuldades e não raramente recorria ao irmão para fazer face às despesas da família: devia-lhe 4 mil escudos há longo tempo e a cunhada, sabedora da dívida, não largava o marido, querendo saber se o empréstimo já estava pago; tanto o atormentou que ele engendrou um truque para resolver o assunto.
Aproveitando uma visita do irmão, chamou-o de lado e, disfarçadamente, deu-lhe os 4 contos, recomendando que lhos voltasse a dar em frente da mulher. O outro, que era de discurso fácil e mestre do improviso, cumpriu à risca o papel:
- Oh Aníbal, toma lá os 4 contos que te devo! Tenho-os trazido na carteira, mas esqueço-me sempre de tos dar, desta vez é que é!
A cunhada acreditou, deliciada, naquela farsa, e nunca mais moeu a paciência ao marido.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Votre ceinture n'est pas attachée

Ele tinha talvez cinco ou seis anos, quando o Pai o levou a dar uma volta no carro novo que, entre outras inovações, tinha uma voz que avisava para pôr o cinto de segurança ou fechar a porta. Ele foi e não fez comentários.
Regressado a casa, disse assim para a Mãe:
- Não te ponhas a pau não! O Pai tem uma gaja no carro que até fala francês!

Lembro-me - 2ª parte

Lembro-me da primeira vez que vi o"E tudo o vento levou", num cinema ao ar livre;
Lembro-me de ver a bandeira inglesa hasteada, na minha cidade, no dia em que terminou a 2ª Guerra Mundial;
Lembro-me de ir às lojas buscar amostras de tecidos.
Lembro-me de ver, ao pé da minha casa, no bairro da Graça, um corvo à porta de uma carvoaria;
Lembro-me da minha gabardina à Humphrey Bogart, quando tinha 14 anos;
Lembro-me de comer umas tabletes de chocolate com arroz, chamadas " palitos de Alfama", que o meu Pai trazia da Confeitaria Nacional;
Lembro-me de andar de patins na Estrada da Serra.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O perú

Era Natal e a festa era em casa dos avós. O Pai abria uma caixa na cozinha e ele, com o nariz colado à mesa, dizia, na sua vózinha de 3 anos:
- Vamo vê xe xai um pu!
- O quê, champô?
- Não, um pu- repetia ele.
- Mas o que é um pu, champanhe?
- Não - gritou o menino, já muito irritado - vamo vê xe xai um pu glu glu glu!

O urso do tio

O tio era conhecido pela sua forretice e por ser parco em ofertas, pelo que todos ficaram surpreendidos quando ele trouxe de Badajoz um brinquedo à menina:
- Toma lá este urso de peluche, mas não o estragues porque custou 114 pesetas!
Ainda cá está o velho urso, na prateleira do quarto, usado e gasto, recordação de um tio que era, também ele, um pouco...urso!

A casa vazia

Nas traseiras da minha casa há uma vivenda. Morava nela uma família: Pai, Mãe, 3 filhos, os netos que vieram depois.
A vivenda foi aumentada para uma das filhas. Estava sempre cheia de gente, alunos, ( o Pai dava explicações), amigos dos netos e, no Natal e na Páscoa, o quintal enchia-se de crianças e de gente alegre que conversava.
Desapareceram o Pai e a Mãe. A pouco e pouco, a casa ficou deserta; filhos e netos vinham muito raramente, e um dia deixaram mesmo de vir. No Natal passado nem vivalma, e agora a casa está para venda. A casa está vazia de gente e de vida. O pior que pode acontecer a uma casa.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A ver passar os comboios...

Há muitos anos, por alturas da mudança para a hora de Verão, um dos meus tios maternos, que era Chefe de Estação da CP numa pequena vila alentejana, contava que alguém lhe foi perguntar o horário dos comboios do dia seguinte:
- Oh Sr. Chefe, a que horas é amanhã o comboio das 8 e meia?
- O comboio das 8 e meia é às 8 e meia - respondeu o meu tio.
- Sr. Chefe, não brinque! Se a hora adianta, o comboio das 8 e meia é às 9 e meia.
- Não senhor, o horário é na mesma às 8 e meia!
- O senhor está a brincar comigo, só pode ser às 9 e meia...
No dia seguinte, o homem chegou às estação às 9 e meia e nem sequer viu passar o comboio...

sábado, 19 de setembro de 2009

Agarra o Verão, Duda

A Duda chora quando a Mãe a deixa no infantário, nos primeiros dias a seguir a um Agosto inteirinho de praia, ar livre, baloiços, piscinas no Alentejo profundo, parques e passeios plenos da liberdade que nem ela sabe que são as férias.
A Duda não quer ficar entre as quatro paredes da sala do infantário, a Duda quer é agarrar o Verão nas suas pequenas mãos sapudas e morenas.

domingo, 31 de maio de 2009

Lembro-me - 1ª parte

Lembro-me da "aurora boreal" no fim dos anos 30;
Lembro-me das cadernetas de racionamento de açúcar durante a 2ª Guerra Mundial;
Lembro-me de um ovo custar 40 centavos;
Lembro-me do toque de alvorada no Castelo de S. Jorge;
Lembro-me dos presos políticos à porta do Governo Civil;
Lembro-me de um concurso hípico em que o meu pai ganhou uma taça;
Lembro-me de ter lido Florbela Espanca pela primeira vez, aos 18 anos;
Lembro-me de desmaiar quando provei o meu vestido de noiva durante 4 horas;
Lembro-me de comer ameixas verdes à porta da minha escola;
Lembro-me da missa dita em latim.

Amor a quanto obrigas...

Ele estava completamente apaixonado e não conseguia esconder de niguém a atracção que aquela mulher de rosto de boneca exercia sobre ele.
Seguia-a por todo o lado: ao mercado, à escola, à missa, eu sei lá...Até que uma vez, num baile, achou que era chegado o momento ideal para entabular conversa; até aí, ela fingira sempre não dar por ele, mas agora ele estava decidido: era a altura certa e ela não escaparia. Não se atreveu a convidá-la para dançar, isso era audácia demasiada, para mais em público. Esperou na antecâmara da sala de baile, talvez ela passasse por ali. Talvez...
E ei-la que aparece, na sua beleza de arrepiar. Ele encheu o peito de ar: era agora. Mas ela dirigiu-se aos lavabos; quando sair, pensou ele. Disfarçadamente, benzeu-se. Tinha que ser, agora ou nunca. Ela saiu dos lavabos e ele avançou:
- Com que então uma mijinha?- foi a única coisa que conseguiu dizer-lhe.
Casaram passados alguns meses.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Os porquês

Ela tinha oito anos e queria saber tudo. Perguntava porque é que a noite era escura, porque é que às vezes a chama se apagava com um sopro e, noutros casos, quando se soprava ainda ficava mais viva. Queria saber para onde vão os dias que passam.
Um dia esteve muito tempo deitada no chão, de barriga para baixo, a ler uma revista, e a Mãe foi ver o que é que a interessava tanto.
O assunto era "De Gaulle e o Mercado Comum". Ela tinha oito anos.

Feiras e rifas

As feiras da minha cidade eram um regalo para mim. Na feira de Setembro estava de férias e podia passar o dia na retouça: carrosseis, Poço da Morte, Casa Rolante, comer massa frita, torrão e os chupa-chupas do velho Sebastião. Em Junho, a Feira das Cerejas também servia de desculpa para faltar a uma aula ou outra.
Quando andava ainda na escola primária, fui duas ou três noites à feira com o meu irmão, que era oito anos mais velho que eu. Havia sempre uma barraca que fazia rifas de panelas de alumínio e numa noite saiu-nos o trem de panelas completo (umas dez peças, entre panelas e tachos). Como era de noite e ninguém o via, o meu irmão acedeu trazer uma ou duas panelas e o resto trouxe eu até casa. A família achou graça, até porque fazia falta renovar a cozinha. ´
Voltámos na noite seguinte, a última noite da feira; a barraca dos alumínios continuava com as rifas, mas as panelas tinham esgotado. Para rifar ("é a última noite, senhoras e senhores, é a última noite!") tinham um galo, um nobre representante dos galináceos, de penas vermelhas e grande crista. Diz-me o meu irmão:
- Vou comprar rifas.
- E se nos sai o galo? - respondi eu.
- Logo se vê.
E não é que saiu mesmo?
A nossa casa era ainda distante do recinto da feira. Durante o trajecto, eu vinha com o galo ( que tinha as patas atadas) ao colo, e o meu irmão uns metros à minha frente. O galo cacarejava, batia as asas, e com as unhas arranhou-me as mãos. Naquela altura foi penoso, mas hoje divirto-me a pensar nesta história. O galo foi para a capoeira e passados uns tempos foi para a panela, mas ninguém o conseguiu comer, de duro que era, apesar de ter estado um dia inteiro ao lume.

domingo, 17 de maio de 2009

Voto secreto

Numas eleições já há muitos anos, ele foi com a Mãe, que ia votar, à Assembleia de voto. Insistiu que queria ir e foi, com a condição de não dizer nada. Prometeu. Quando cumprido o seu dever cívico, a Mãe apresentou o boletim de voto na mesa, e diz ele:
- Então, lá votaste na Maria Pintassilga!

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Quim Mamão e C.ª

No velho prédio da rua em frente à minha, morava o vizinho "Bodanego", sapateiro de profissão. A oficina era esconsa, suja e com uns fundos misteriosos, que desafiavam a minha imaginação. Ora esse sapateiro tinha um filho, o Quim, que era especialista naquilo a que hoje se chamaria "prestação de serviços": electricistista, inventor, sapateiro, canalizador, investigador, cientista, organizador de eventos...
O Quim tinha um amigo, o Martinho, que com ele trabalhava nos tais fundos misteriosos da oficina. Ali experimentavam inventos, fabricavam pomadas e "pózinhos de perlim-pim-pim". A pomada era a famosa pomada "Estrela", que engraxava sapatos, polia móveis e até dava resultado nas dores reumáticas. Deslocavam-se a domicílio e o Quim algumas vezes consertou canos entupidos, avarias eléctricas e montou ratoeiras na minha casa. Pelo Carnaval, a dupla pregava partidas às pessoas que por ali passavam, vindas das freguesias mais distantes, atando notas de vinte escudos a um fio de coco que puxavam, quando alguém se baixava para as apanhar, entre grandes gargalhadas.
Para além de tudo isto, o Quim ajudava umas senhoras solteironas, feiotas e ricas, a fazer festas e bailes: contratava músicos (acordeonistas), encomendava a comida, contratava os criados de mesa, e depois da festa, ele próprio fazia a limpeza. A parte eléctrica da festa também era com ele: lâmpadas de maior voltagem, jogos de luzes na sala, enfim, tudo lhe saía das mãos e daquela cabeça imaginativa e louca. Às vezes rebentavam fusíveis e havia curto-circuitos, que geravam o pânico entre os convidados e as donas da casa, que imediatamente chamavam o Quim. O Quim, aliás, estava logo ali à esquina (era ele que desligava o quadro eléctrico que estava no patamar), pronto para salvar a festa.
O que é facto é que as duas senhoras arranjaram maridos nessas festas e o Quim muito contribuiu para isso.

domingo, 26 de abril de 2009

As botas do Caneco

Volto sempre à Nazaré, quando penso na minha infância. Era lá que fazia anualmente as minhas férias na praia, até aos meus 10 anos. Todas as famílias que iam a banhos tinham um banheiro, contratado para toda a época. O nosso era o Caneco.
O Caneco, também conhecido por Passarinho, era um homem alto e magro, de rosto tisnado pelo sol e pelo sal. A sua mão grande e ossuda, onde a minha se perdia, levava-me até às ondas, onde pulava, divertida.
Durante o tempo frio, como a praia não lhes dava sustento, o Caneco e a sua mulher, a Arminda, vinham até às localidades onde residiam os seus fregueses. Lembro-me de um Inverno dos anos 40 em que eles estiveram em nossa casa: o Caneco vinha descalço e isso afligia muito os meus Pais, pois a nossa cidade era bastante fria e chuvosa. O meu Pai insistiu com ele para calçar umas botas da tropa, mas ele nem um passo conseguia dar com elas. Foram então os dois a uma sapataria e o meu Pai comprou-lhe umas botas de borracha mais macias, julgando ser mesmo aquilo de que o banheiro precisava. Mas nem pensar! Ao lado do meu Pai, na rua, vinha o bom do Caneco com as botas na mão, rindo e conversando com aquele sotaque de pesacador da Nazaré, banheiro no Verão e sempre amigo do seu amigo. Levou as botas, mas nunca as calçou.

sábado, 25 de abril de 2009

Eu não acredito em bruxas, mas...

A Cooperativa Operária era uma instituição da minha cidade situada perto da minha casa. Era uma mercearia em ponto grande com loja de fazendas também, e tinha que ser sócio para fazer compras lá. Pagava-se em "guichets" através de uma caderneta onde era registada a despesa e ao fim de algum tempo podia acumular-se uma determinada quantia e fazerem-se as compras de graça. Fui lá muitas vezes porque o meu pai era sócio.
A Cooperativa também tinha uma padaria com forno de lenha, onde os sócios podiam mandar cozer pão, bolos, assados, o que quisessem. A velha Emília das Castanhas levava com frequência uma grande panela de barro para cozer no forno, o que despertou a curiosidade dos padeiros. Um dia pareceu-lhes que de dentro da panela vinha um som de chiar: abriram a panela e viram, com grande espanto, que lá dentro estavam sapos vivos. Um horror! A velha Emília há muito que tinha fama de bruxa, e de facto a suspeita confirmava-se! Foi assunto para lavar e durar, na minha rua e na cidade inteira. Eu conhecia a velha e sempre que passava ao pé dela tremia e arrepiava-me. Não que eu acredite em bruxas, mas lá que as há, há. E bem perto de mim...

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Tingerinas

Circular enviada pelo subchefe da Polícia ao Reitor do Liceu Nacional de minha cidade, corria a década de 1940:
"Ex.mo Sr Reitor, informo que os alunos desse estabelecimento de insino saltem o muro da parede do quintal, roubem as tingerinas e comem-nas, em proveito próprio".
O mesmo subchefe, ao ser chamado um dia para tomar conta da ocorrência de um alegado suicídio, disse aos seus subordinados:
- Ponham o cadáver à sombra, que o cadáver já está morto.
Na altura em que não era permitido que as pessoas se juntassem na rua a conversar, ele aproximou-se de dois homens e disse:
- Psst, é proibido andar parado!
No jantar de homenagem que marcou o início da sua reforma, um dos oradores, que por acaso era padre e professor, propôs um brinde ao "dedicado servidor da causa pública, que escreve chefe com um x". Tenho dito.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

O carteiro tocou duas vezes

A menina fazia 9 anos nesse dia. Como de costume, o carteiro entregou a correspondência, mas nem um só postalinho havia para a aniversariante. Quase chorou, lamentando ninguém lhe ter escrito. Passados alguns minutos, eis o carteiro de volta. Chamou a menina e disse-lhe não ter reparado que, no fundo do saco, havia um postal para ela. Era um postal ilustrado (daqueles em pensamento) que ele tinha comprado na loja que havia ali perto e que tinha escritas as seguintes palavras:
- Muitos parabéns do carteiro amigo Alexandre José Carrapiço.
Custou tão pouco fazer feliz a menina de 9 anos!

terça-feira, 14 de abril de 2009

O filho do burro

Morava na mesma rua que eu, era piconeiro, vivia com a mãe, a Senhora Rosa, e tinha um burro que carregava os sacos do picão. Bebia, bebia muito e era raro o dia em que não subia a rua quase de gatas. Entrava para casa e o burro entrava também. Dizia, para quem o queria ouvir:
- Este burro é mais que meu pai!
Por isso o meu Pai chamava-lhe "O filho do burro".

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Carmencita

A meio da década de 40, ouvia-se muito a Amália Rodrigues na rádio e o filme "Capas negras", do qual ela era protaganista, tinha grande sucesso. Eu sabia as letras dos fados de cor (tinha-as pedido pelo Correio para a Valentim de Carvalho), mas havia um que adorava cantar: "Carmencita".
Da coberta de uma mala fiz um xaile, punha uma flor vermelha ao peito, soltava o cabelo e pintava os lábios para fora, para a boca parecer maior. Aparecia detrás das cortinas da sala, para cantar para um espectador apenas: o meu Pai, que lia o jornal. Nessa altura, já a minha Mãe estava doente e a minha tia andava com a lida da casa a seu cargo.
- Pai, deixe o jornal e bata palmas!
- Não sabes cantar outra coisa? Já começo a estar farto da Carmencita...
Mudei o reportório, mas depois ele já não tinha tempo para me ouvir.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

A Pequena Pátria

Para o bem e para o mal, a minha cidade é a minha Pátria. Aqui nasci, mas não sei se será por isso que me sinto tão ligada a esta terra.
Tem tudo a ver com a cor do céu, tão azul, com o Sol que a banha toda, desde as torres da Sé ao Convento de Santo António, com o branco das casas, que no Verão nos faz franzir os olhos. É com isto que eu me identifico. Gosto de sair de manhã e percorrê-la desde a Praça da República ao Rossio. Nas tardes de Verão o pôr do Sol é laranja e lilás e à noite o luar põe-na prateada.
É a minha cidade, a minha casa, o meu refúgio, a minha pequena Pátria.

Uma noite de Verão

A noite estava quente, e sentiam-se bem no quintal, sentados no muro.
Na berma da estrada, mesmo em frente da casa, um militar pedia boleia; seriam umas onze da noite, poucos carros passavam e nenhum parava ao sinal do rapaz. Meteu conversa com ele e soube que o soldado tinha que apanhar o comboio da meia-noite, em Vila Velha do Ródão, para estar no quartel de Castelo Branco a horas. Pontualmente, nem mais um minuto de atraso. Mas o tempo passava, e o rapaz não arranjava quem o levasse.
Então decidiu agir: entrou em casa e foi telefonar a uma pessoa amiga que tinha um táxi, pedindo-lhe que levasse o soldado ao seu destino; no dia a seguir fariam contas.
O militar seguiu o seu caminho, não sem antes agradecer:
- Que um dia alguém faça bem aos seus filhos como o Sr. me fez.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A enciclopédia

O professor de História era um homem sisudo, de feições duras e idade acima dos 50. Vestia à antiga, colarinho e punhos engomados, chapéu de diplomata e uma pérola na gravata. Falava muito baixo, e nunca se exaltava. Tinha sido Reitor naquele Liceu uma década atrás.
Numa turma de rapazes, o 3.º B, pediu ao chefe de turma que fosse à Biblioteca buscar um livro. O aluno demorou algum tempo, e apareceu acompanhado pela bibliotecária, que parecia surpreendida e mesmo a esconder um risinho:
- Sr. Doutor, eu não tenho na Biblioteca a escolopendra!
Todos se riram, e o próprio professor esboçou um sorriso; ele tinha falado no seu tom de voz grave baixo. O aluno não quis perguntar, porque teve vergonha de admitir que não tinha percebido o pedido, que afinal era apenas uma enciclopédia!

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Traje de Luces

A minha cidade, nos anos 40, tinha espectáculos de touros com algma frequência. O meu Pai era um grande aficcionado e, numa tarde em que toureava um espada mexicano, o Carlos Arruza, assitimos todos num camarote (todos menos o meu irmão, que não gostava de touradas). Ao nosso lado estava a família de um médico muito célebre na cidade, cuja mulher andava sempre no último grito da moda, talvez um pouco exageradamente, para a idade dela. Naquela tarde trazia um vestido encarnado e um turbante da mesma cor.
O meu Pai, crítico como sempre, achou que a senhora estava vestida para tourear, e eu e ele divertimo-nos a imaginar como seria se ela descesse à arena para tourear...A minha Mãe, dizia ele, metia a dita senhora num chinelo, com o seu fato saia e casaco castanho e beige, com mala e sapatos a condizer. Eu concordei: nesse tarde, o Carlos Arruza triunfou na arena, mas na assistência a estrela foi a minha Mãe!

domingo, 29 de março de 2009

O jardim

Quando a minha geração era adolescente, o jardim siginificava muito: era sinónimo de escapadelas, de leitura, de convívio, de namoricos, de divertimento, enfim, de tudo o que a gente nova gosta ainda. Era um jardim bonito, arborizado, com um lago, bancos, recantos discretos, parque infantil e, em tempos, também com biblioteca.
Há cerca de dois anos, resolveram modificá-lo, com o Projecto Pólis. Aqui na cidade, todos pensaram : "sim senhor, é capaz de melhorar e devolver à cidade um jardim a que os mais novos não tinham grande ligação. Porque não?" Como diria o meu Pai, é para bem do povo e não se paga nada. Vamos a isto! E começaram as obras; não sei bem quanto tempo demoraram, mas finalmente o jardim ficou pronto!
Mas oh desilusão, surgiu um espaço incaracterístico, foram cortadas árvores, os bancos desapareceram, assim como o lago e o parque infantil, e em seu lugar nada surgiu de positivo , de prático, digno de uma cidade. Um espaço vazio de memória, onde não apetece ir e onde o poeta foi escondido, para que não veja o que fizeram ao seu jardim. Já lá não passo há largos meses, e acho que não voltarei lá. Desgosta-me ver o meu jardim dos anos 40 transformado em lixeira, mas em todo o caso, um espaço para o Popov, o lindo Labrador da minha neta, brincar, correr, dar largas à sua insaciável vontade de se divertir, como todo o cão que se preza.
Ao menos ele que disfrute do defunto jardim...

quinta-feira, 26 de março de 2009

As lições de piano

Teria uns nove ou dez anos quando comecei a ter aulas de música para aprender a tocar piano. Tudo muito bonito, muito "benzoca", só que não gostei mesmo nada. Era um professor já de idade, que tinha por hábito usar um pequeno ponteiro nas aulas de solfejo para bater nas mãos dos alunos, quando estes se enganavam. Doía, doía a valer e devo confessar que me desagradava o facto de o meu lhe pagar para ele me bater nos nós dos dedos; não fazia sentido!
Disse em casa que não continuaria a ir às lições de piano.
- Que pena! - disseram tanto a minha mãe como o meu pai, mais ela do que ele, porque se eu não gostava, ele também não. Também soube na altura que tencionavam comprar um piano para mim, um piano que era de umas senhoras irmãs que iam viver para Lisboa e queriam vender o velho piano de cauda por um preço muito acessível, porque eram amigas da minha família há muitos anos.
Tudo ficou sem efeito, uma vez que eu tinha dito categoricamente que não queria aprender música. Arrependi-me mais tarde: será que hoje teria ali na sala um Steinway, no qual as minhas netas pequenas tocariam, acompanhadas à guitarra pelos primos?

domingo, 22 de março de 2009

O charrueco

Tinha a garagem no rés-do-chão do prédio ao lado do meu e lá guardava o "Ford" de calça arregaçada que usava principalmente para se deslocar à Serra de S. Mamede, onde tinha uma quinta. Quando punha o carro a trabalhar, ainda na garagem, os prédios tremiam. "Lá vai ele sair" e, porque era realmente um espectáculo, eu ia à janela, para ver o que hoje daria um "sketch" humorístico de primeira: de guarda-pó quase até aos pés, o cónego dava à manivela com o "capot" levantado durante largos minutos. O carro rugia, para logo a seguir ficar em silêncio. Novamente a manivela, e finalmente um pulo para dentro do carro.
Nessa altura, já se tinham juntado uma dúzia de garotos que empurravam o carro até ele pegar completamente; sentado ao volante, o cónego mandava de lá castanhas secas, que os miúdos apanhavam no ar e do chão com grande alarido.
Por isso se dizia que o charrueco do padre andava a castanhas secas...

segunda-feira, 16 de março de 2009

A Pinga-amor

Ela estava internada na Casa de Saúde, convalescente de uma operação ao apêndice. Fui lá vê-la e levei-lhe um livro da famosa Colecção Azul, chamado "Ama-se uma vez na vida". Entrei no quarto sem bater e deparei com o namorado (naquela altura já era ex-namorado) agarrado às mãos dela a chorar. Ela tinha-o trocado por outro, um mais velho. E já ia no 3.º, nesse espaço de tempo em que esteve doente; todos os dias mudava. Eu sabia disso mas não contava que o mais antigo de todos (namoravam-se desde o 1.º ano do Liceu) ficasse naquele estado. Não sabia o que fazer nem o que dizer. Ele tirou-me o livro das mãos, mandou-lho à cara e depois foi-se embora a chorar. Minutos depois entrou a nova paixão e tudo foram sorrisos
Apanhei o livro do chão: "Ama-se uma vez na vida" não era de todo o livro indicado para a minha amiga.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Setenta vezes Sete

Ela tinha acabado de levantar a mesa do almoço. Estava sozinha quando bateram à porta, e foi abrir. Para seu espanto, apareceu-lhe um franciscano idoso, com aspecto cansado, que lhe pediu alguma coisa de comer. Ela convidou-o a entrar, mas o monge não quis. Falava espanhol mas entendia o português. Ela subiu as escadas, foi à cozinha e trouxe-lhe algumas coisas que tinham sobrado do almoço. Sentado no degrau, ele comeu e pediu água. Depois agradeceu muito e perguntou se haveria na cidade algum albergue onde pernoitar. Claro que havia, ela indicou-lho e ofereceu-se para o levar lá. Não era preciso, ele perguntaria e de certeza que ia encontrar. Ela ainda lhe meteu na mão algum dinheiro, de facto todo o pouco que tinha em casa e que era, naqueles dias sem multibanco, tudo o que teria até ao fim do mês...
Ficou impressionada toda a tarde. Não tardou em receber um recado: o marido mandava dizer que uns parentes iriam lá a casa para a ver. Chegaram, não se demoraram, e à saída meteram-lhe no bolso do vestido uma ajuda para o enxoval do bébé que estava para nascer. Quando eles saíram, ela levou a mão ao bolso e viu que o que lhe tinham dado era dez vezes mais do que o que ela tinha dado ao franciscano.
Muito tempo depois, contou ao marido. A vida também é feita destas coisas misteriosas que não se explicam, mas que se sentem do fundo da alma.

domingo, 8 de março de 2009

A Conceição da Cochela

Estava a ver na televisão o caso de um homem que mudou de sexo e hoje é mulher (cantora, de cabelo pintado, rosto feioso e sem expressão). Lembrei-me então de uma mulher da Nazaré a quem chamavam "Conceição da Cochela".
Era alta e muito diferente das outras mulheres da terra, desde o vestir até ao que fazia. Usava calças e umas botas altas, casaco escuro e um lenço amarrado na cabeça. Fazia parte de uma "companha" de pescadores e ia ao mar com eles, sendo a pesaca o seu modo de sobrevivência. Do seu rosto já não me recordo, mas sei que, depois da faina ia para a taberna com os outros pescadores, fumava e acho que, se fosse o caso, também andava à pancada, tal como eles.
Naquele tempo, tão distante, parece-me que ninguém a punha de lado, apesar de ser uma figura extravagante que destoava do todo das mulheres da vila.

quarta-feira, 4 de março de 2009

A Estrada do Bosque

No princípio dos anos 50 andou em "tournée" pelo país uma organização de cantores, actores e músicos chamada "Os Companheiros da Alegria". O director era o actor e locutor Igrejas Caeiro. Desse conjunto itinerante de artistas fazia parte um cantor chamado António Alvarinho, por quem tive uma paixoneta platónica.
Numa actuação na minha cidade resolvemos, eu e mais duas amigas, escrever uma carta ao director do grupo pedindo para para o Alvarinho cantar uma canção e dedicá-la às "Três Marias". Fui eu própria entregar a carta ao porteiro do hotel.
A certa altura do espectáculo, eis que o tal cantor vem e dedica às "Três Marias" a canção "Estrada do Bosque"! Íamos morrendo de contentamento. Julgo que o Teatro em peso soube para quem era a canção, porque todos os olhares se viraram (pelo menos a nós pareceu-nos) para a frisa de boca onde estavámos as três amigas: Maria José, Maria de Lurdes e eu.
Jamais esqueci aquela noite e o Alvarinho ainda me mandou uma fotografia autografada que conservo.
A canção termina assim:
Vem p'la estrada perdida, para eu te encontar no caminho da vida...
Pavarotti gravou esta canção, que é italiana e lindíssima, e acabei mesmo agora de a ouvir.
As recordações que ela me traz...

domingo, 1 de março de 2009

Chá, café e leite

Chá de manhã e à tarde, café ao meio da manhã, leite à noite. Todos os dias, sem falhar. Dos três, é o chá que bebo em maior quantidade, porque é do que gosto mais; chá frio no Verão, quente no Inverno, e sempre mais do que uma chávena.
Vem de longe, este gosto. Em caso dos meus pais bebia-se chá à noite. Foi no entanto a minha sogra que me meteu "a fraternal". Ela era simplesmente a maior bebedora de chá que eu conheci. O último medicamento que tomou foi com chá, que eu bem vi o copo na mesa de cabeceira. Havia lá em casa uma cafeteira de esmalte azul sempre com chá feito.
Quando falo em chá, é ao chá preto que me refiro. É a bebida ideal, até porque dizem que faz bem à saúde, porque actua como anti-oxidante. Além disso, acompanha muito bem com torradas, pão com queijo ou compota, bolachas, biscoitos, bolo finto e boleimas de Portalegre.
Eis o chá em todo o seu esplendor, à mesa, pelas cinco da tarde!

É o bicho...

- O que tens na boca, menina?
- São bolinhas, Mãe!
Eram bichos de conta.
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- Não metas baratas na boca, cospe tudo imediatamente!
- É bom Mamã, tem creme e dá estalinhos!
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- Mãe, está ali no quintal uma pulseira de ouro!
Era uma grande escolopendra amarela.
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- Mulher, tenho um bicho dentro das calças.
Fiquei horrorizada. Ele despiu-se, afinal era a corrente das chaves a bater na perna, porque o bolso das calças estava roto.
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- O que estás a comer?
- "Xopinha di galinha"
Eram os farelos amassados com restos de comida para dar às galinhas.



sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

A velha Amiguinha

Ela não gostava de assobios. Tinha muita idade e muito mau feitio. Vivia numa aldeia alentejana muito branca, muito limpa, onde as pessoas esfregavavam o bocado da rua que lhes passava à porta.
Mas esta tal velha tinha sempre que embirrar e não suportava que alguém passasse na rua a assobiar. O Antonico, miúdo endiabrado e brincalhão, atreveu-se e, de mãos nos bolsos e boina às três pancadas, ele aí vai, rua acima.
A velha Amiguinha estava sentada à porta, a escolher grão para uma panela de barro. E o Antonico aí vem, assobiando distraído; sem saber como, levou com a panela de barro e os respectivos grãos: um golpe profundo do lado direito da cabeça foi a marca que ficou para toda a vida.
Só por ter assobiado distraído na rua da velha Amiguinha...

sábado, 3 de janeiro de 2009

A hora do chá

Ela vem sempre à mesma hora, agora um pouco mais tarde, por causa da burocracia do emprego; mas não falha, bate à porta (tem chave mas não usa), sempre com boa disposição.
- Estás boa, filha?
- Estou boa - diz, com uma acentuação meiga e divertida.
E tomamos o chá, conversando e rindo, a maior parte das vezes. Chá acabado de fazer no Inverno, frio e em copo no Verão. Umas bolachas e às vezes bolo de azeite sem açúcar, por via das dietas...
E conversamos, eu ansiosa por lhe contar tudo, o que li no jornal e o que vi na T.V. Afinal, aquilo que só falo com ela, porque não tenho mais ninguém com quem trocar opiniões e, em alguns casos, desabafar.
Faz-me muita falta este encontro do fim de tarde com a minha filha mais velha. Espero-o ansiosamente.
- Até amanhã, filha.
- Até amanhã, Mãe.
Fecho a porta, até ao outro dia.