domingo, 29 de março de 2009

O jardim

Quando a minha geração era adolescente, o jardim siginificava muito: era sinónimo de escapadelas, de leitura, de convívio, de namoricos, de divertimento, enfim, de tudo o que a gente nova gosta ainda. Era um jardim bonito, arborizado, com um lago, bancos, recantos discretos, parque infantil e, em tempos, também com biblioteca.
Há cerca de dois anos, resolveram modificá-lo, com o Projecto Pólis. Aqui na cidade, todos pensaram : "sim senhor, é capaz de melhorar e devolver à cidade um jardim a que os mais novos não tinham grande ligação. Porque não?" Como diria o meu Pai, é para bem do povo e não se paga nada. Vamos a isto! E começaram as obras; não sei bem quanto tempo demoraram, mas finalmente o jardim ficou pronto!
Mas oh desilusão, surgiu um espaço incaracterístico, foram cortadas árvores, os bancos desapareceram, assim como o lago e o parque infantil, e em seu lugar nada surgiu de positivo , de prático, digno de uma cidade. Um espaço vazio de memória, onde não apetece ir e onde o poeta foi escondido, para que não veja o que fizeram ao seu jardim. Já lá não passo há largos meses, e acho que não voltarei lá. Desgosta-me ver o meu jardim dos anos 40 transformado em lixeira, mas em todo o caso, um espaço para o Popov, o lindo Labrador da minha neta, brincar, correr, dar largas à sua insaciável vontade de se divertir, como todo o cão que se preza.
Ao menos ele que disfrute do defunto jardim...

quinta-feira, 26 de março de 2009

As lições de piano

Teria uns nove ou dez anos quando comecei a ter aulas de música para aprender a tocar piano. Tudo muito bonito, muito "benzoca", só que não gostei mesmo nada. Era um professor já de idade, que tinha por hábito usar um pequeno ponteiro nas aulas de solfejo para bater nas mãos dos alunos, quando estes se enganavam. Doía, doía a valer e devo confessar que me desagradava o facto de o meu lhe pagar para ele me bater nos nós dos dedos; não fazia sentido!
Disse em casa que não continuaria a ir às lições de piano.
- Que pena! - disseram tanto a minha mãe como o meu pai, mais ela do que ele, porque se eu não gostava, ele também não. Também soube na altura que tencionavam comprar um piano para mim, um piano que era de umas senhoras irmãs que iam viver para Lisboa e queriam vender o velho piano de cauda por um preço muito acessível, porque eram amigas da minha família há muitos anos.
Tudo ficou sem efeito, uma vez que eu tinha dito categoricamente que não queria aprender música. Arrependi-me mais tarde: será que hoje teria ali na sala um Steinway, no qual as minhas netas pequenas tocariam, acompanhadas à guitarra pelos primos?

domingo, 22 de março de 2009

O charrueco

Tinha a garagem no rés-do-chão do prédio ao lado do meu e lá guardava o "Ford" de calça arregaçada que usava principalmente para se deslocar à Serra de S. Mamede, onde tinha uma quinta. Quando punha o carro a trabalhar, ainda na garagem, os prédios tremiam. "Lá vai ele sair" e, porque era realmente um espectáculo, eu ia à janela, para ver o que hoje daria um "sketch" humorístico de primeira: de guarda-pó quase até aos pés, o cónego dava à manivela com o "capot" levantado durante largos minutos. O carro rugia, para logo a seguir ficar em silêncio. Novamente a manivela, e finalmente um pulo para dentro do carro.
Nessa altura, já se tinham juntado uma dúzia de garotos que empurravam o carro até ele pegar completamente; sentado ao volante, o cónego mandava de lá castanhas secas, que os miúdos apanhavam no ar e do chão com grande alarido.
Por isso se dizia que o charrueco do padre andava a castanhas secas...

segunda-feira, 16 de março de 2009

A Pinga-amor

Ela estava internada na Casa de Saúde, convalescente de uma operação ao apêndice. Fui lá vê-la e levei-lhe um livro da famosa Colecção Azul, chamado "Ama-se uma vez na vida". Entrei no quarto sem bater e deparei com o namorado (naquela altura já era ex-namorado) agarrado às mãos dela a chorar. Ela tinha-o trocado por outro, um mais velho. E já ia no 3.º, nesse espaço de tempo em que esteve doente; todos os dias mudava. Eu sabia disso mas não contava que o mais antigo de todos (namoravam-se desde o 1.º ano do Liceu) ficasse naquele estado. Não sabia o que fazer nem o que dizer. Ele tirou-me o livro das mãos, mandou-lho à cara e depois foi-se embora a chorar. Minutos depois entrou a nova paixão e tudo foram sorrisos
Apanhei o livro do chão: "Ama-se uma vez na vida" não era de todo o livro indicado para a minha amiga.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Setenta vezes Sete

Ela tinha acabado de levantar a mesa do almoço. Estava sozinha quando bateram à porta, e foi abrir. Para seu espanto, apareceu-lhe um franciscano idoso, com aspecto cansado, que lhe pediu alguma coisa de comer. Ela convidou-o a entrar, mas o monge não quis. Falava espanhol mas entendia o português. Ela subiu as escadas, foi à cozinha e trouxe-lhe algumas coisas que tinham sobrado do almoço. Sentado no degrau, ele comeu e pediu água. Depois agradeceu muito e perguntou se haveria na cidade algum albergue onde pernoitar. Claro que havia, ela indicou-lho e ofereceu-se para o levar lá. Não era preciso, ele perguntaria e de certeza que ia encontrar. Ela ainda lhe meteu na mão algum dinheiro, de facto todo o pouco que tinha em casa e que era, naqueles dias sem multibanco, tudo o que teria até ao fim do mês...
Ficou impressionada toda a tarde. Não tardou em receber um recado: o marido mandava dizer que uns parentes iriam lá a casa para a ver. Chegaram, não se demoraram, e à saída meteram-lhe no bolso do vestido uma ajuda para o enxoval do bébé que estava para nascer. Quando eles saíram, ela levou a mão ao bolso e viu que o que lhe tinham dado era dez vezes mais do que o que ela tinha dado ao franciscano.
Muito tempo depois, contou ao marido. A vida também é feita destas coisas misteriosas que não se explicam, mas que se sentem do fundo da alma.

domingo, 8 de março de 2009

A Conceição da Cochela

Estava a ver na televisão o caso de um homem que mudou de sexo e hoje é mulher (cantora, de cabelo pintado, rosto feioso e sem expressão). Lembrei-me então de uma mulher da Nazaré a quem chamavam "Conceição da Cochela".
Era alta e muito diferente das outras mulheres da terra, desde o vestir até ao que fazia. Usava calças e umas botas altas, casaco escuro e um lenço amarrado na cabeça. Fazia parte de uma "companha" de pescadores e ia ao mar com eles, sendo a pesaca o seu modo de sobrevivência. Do seu rosto já não me recordo, mas sei que, depois da faina ia para a taberna com os outros pescadores, fumava e acho que, se fosse o caso, também andava à pancada, tal como eles.
Naquele tempo, tão distante, parece-me que ninguém a punha de lado, apesar de ser uma figura extravagante que destoava do todo das mulheres da vila.

quarta-feira, 4 de março de 2009

A Estrada do Bosque

No princípio dos anos 50 andou em "tournée" pelo país uma organização de cantores, actores e músicos chamada "Os Companheiros da Alegria". O director era o actor e locutor Igrejas Caeiro. Desse conjunto itinerante de artistas fazia parte um cantor chamado António Alvarinho, por quem tive uma paixoneta platónica.
Numa actuação na minha cidade resolvemos, eu e mais duas amigas, escrever uma carta ao director do grupo pedindo para para o Alvarinho cantar uma canção e dedicá-la às "Três Marias". Fui eu própria entregar a carta ao porteiro do hotel.
A certa altura do espectáculo, eis que o tal cantor vem e dedica às "Três Marias" a canção "Estrada do Bosque"! Íamos morrendo de contentamento. Julgo que o Teatro em peso soube para quem era a canção, porque todos os olhares se viraram (pelo menos a nós pareceu-nos) para a frisa de boca onde estavámos as três amigas: Maria José, Maria de Lurdes e eu.
Jamais esqueci aquela noite e o Alvarinho ainda me mandou uma fotografia autografada que conservo.
A canção termina assim:
Vem p'la estrada perdida, para eu te encontar no caminho da vida...
Pavarotti gravou esta canção, que é italiana e lindíssima, e acabei mesmo agora de a ouvir.
As recordações que ela me traz...

domingo, 1 de março de 2009

Chá, café e leite

Chá de manhã e à tarde, café ao meio da manhã, leite à noite. Todos os dias, sem falhar. Dos três, é o chá que bebo em maior quantidade, porque é do que gosto mais; chá frio no Verão, quente no Inverno, e sempre mais do que uma chávena.
Vem de longe, este gosto. Em caso dos meus pais bebia-se chá à noite. Foi no entanto a minha sogra que me meteu "a fraternal". Ela era simplesmente a maior bebedora de chá que eu conheci. O último medicamento que tomou foi com chá, que eu bem vi o copo na mesa de cabeceira. Havia lá em casa uma cafeteira de esmalte azul sempre com chá feito.
Quando falo em chá, é ao chá preto que me refiro. É a bebida ideal, até porque dizem que faz bem à saúde, porque actua como anti-oxidante. Além disso, acompanha muito bem com torradas, pão com queijo ou compota, bolachas, biscoitos, bolo finto e boleimas de Portalegre.
Eis o chá em todo o seu esplendor, à mesa, pelas cinco da tarde!

É o bicho...

- O que tens na boca, menina?
- São bolinhas, Mãe!
Eram bichos de conta.
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- Não metas baratas na boca, cospe tudo imediatamente!
- É bom Mamã, tem creme e dá estalinhos!
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- Mãe, está ali no quintal uma pulseira de ouro!
Era uma grande escolopendra amarela.
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- Mulher, tenho um bicho dentro das calças.
Fiquei horrorizada. Ele despiu-se, afinal era a corrente das chaves a bater na perna, porque o bolso das calças estava roto.
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- O que estás a comer?
- "Xopinha di galinha"
Eram os farelos amassados com restos de comida para dar às galinhas.