sábado, 20 de dezembro de 2008

A Noite das Noites

Eram duas da manhã, e a D. Ana continuava amassando as filhós, que dizia não tardariam a ficar prontas.
Tínhamos jantado tarde porque era noite de Natal. Alguns doces já se tinham comido, mas as filhós é que não havia meio.
- Dão muito trabalho - dizia ela, com a sua voz calma e arrastada- mas é só acrescentar mais um pouco de farinha e de aguardente e ficam prontas.
Eu dormitava à camilha, junto da braseira onde ardiam as brasas que vinham do fogão de lenha. As azevias de grão estavam prontas e polvilhadas com açúcar e canela.
E a conversa continuava, à mistura com pingorretas de café requentado.
Lá de dentro, de um dos quartos, veio uma voz que dizia já ser tarde e horas de dormir. A tia encostou a porta e agora falavam mais baixo.
O dia quase clareava, e as filhós continuavam no alguidar de barro vidrado.
Do Presépio, o Menino Jesus sorriu-me. Estaria Ele também à espera das filhós?

domingo, 14 de dezembro de 2008

O comunista

Por volta de 1943 ou 1944 esteve em nossa casa uma personagem à qual eu baptizei de "o comunista", de tal modo que para mim, durante muitos anos, um comunista era um homem que se vestia de castanho, usava chapéu e tinha um ar misterioso.
Esse homem chegou a nossa casa recomendado pelo meu tio Aníbal, e ficou conosco uns dois dias. Durante esse tempo, esteve quase sempre fechado com o meu pai na sala e foi de relance que o vi. Quem era? Nunca soube, apenas percebi que o tratavam por Sr. Mata. Foi-se embora como chegou, cercado de mistério e silêncio. Na manhã em que partiu levava uma pequena mala, o chapéu e o tal fato castanho. Mais tarde vim a saber que era um ferroviário militante do Partido Comunista, que estava em fuga para o estrangeiro. Se conseguiu ou não, ou se o verdadeiro nome dele era mesmo Mata, ninguém soube...

Cinema paraíso

Em garota tive pretensões a actriz, como quase todas as raparigas: copiava as roupas e os penteados das vedetas e cheguei a mandar fazer uma camisola igualzinha à que a Anne Blith vestia na capa da revista "Cena Muda"; também conseguia dar ao meu cabelo aquela queda em onda larga do lado direito, tal e qual a Veronika Lake...
Ainda cheguei a ver cinema mudo, no Cinema Royal, em Lisboa, e depois em Runa, onde o meu pai prestava serviço militar no Asilo dos Inválidos do Exército. Num barracão improvisado em sala de cinema, vi filmes da Shirley Temple e do Charlot comentados pelo projeccionista. Quantas lágrimas me fizeram chorar aquelas cenas a que os comentários emprestavam um dramatismo ingénuo, tão próprio daqueles tempos!
Mais tarde, menina e moça na minha cidade, punha o melhor vestido para ir às matinés; no Verão, o cinema era ao ar livre, em cadeiras muito duras, pelo que muitas vezes levavámos cadeiras confortáveis de casa. Nos intervalos (todos os filmes tinham intervalo), aproveitámos para conversar e catrapiscar alguém. Foi assim que vi todos os grandes filmes dos anos 30 e 40, mas recordo especialmente, pela ternura e pela ingenuidade, os filmes da série da Família Hardy, com o Mickey Rooney e a Judy Garland.
Até hoje, só a magia renovada do cinema me conseguiu transmitir o fascínio que me toca e me enche de emoção.