domingo, 28 de setembro de 2008

Dos tecidos

Há dias, passando a ferro um camiseiro ( um termo moderno para designar uma peça de roupa antiga), vi na etiqueta: ""100% viscose". Que será isto? Só o nome dá repugnância!
Quando eu era rapariga, os tecidos tinham outros nomes: percal, gorgorina, piquet, organdi, organza, opal, riscado, chita, popeline, creton, cassa, tobralco...Mais tarde, em cerimónias de casamentos, usei o tafetá, o veludo, o moirée, o crepe georgette, o gorgorão de seda e o cetim sablée, parece que me estou a ver com essas belas roupas, a desfilar nos cortejos das amigas que foram casando!

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Eleutério Barriguinhas Chambel

Nós tivemos um gato, amarelo e branco, que o meu primo Manel apanhou pequenino na estação do comboio e trouxe no bolso para nossa casa.
O gato depressa se fez um bichano gordo e simpático, e o meu irmão Lito tinha por ele um especial carinho, que, aliás, era recíproco. Apesar de ser muito reservado e tímido, o meu irmão ensinou ao gato uma série de habilidades que faziam as delícias dos nossos serões: saltava um fio posto a toda a largura de uma porta, fio esse que ia subindo em altura, tal como a fasquia do salto em altura; se não me engano, chegou aos 90 cm, o que, para um gato, era considerável. Também saltava pelo arco de bastidor (um círculo de madeira onde se punha um pano para bordar), chegando a saltar até por dentro de um aro metálico ao qual o meu irmão pegava fogo.
Por todas estas habilidades era conhecido, e a vizinhança em peso vinha ver os espectáculos do Eleutério, assim baptizado em homenagem a um atleta do Benfica. Tinha por apelido (o gato) Barriguinhas Chambel. O gato seguia o meu irmão por toda a parte e dormia à porta do quarto dele. Quando o Lito adoeceu, mudámos de casa, mas o Eleutério ficou muito habituado à antiga moradia, e fugia para lá muitas vezes. Depois, quando o Lito começou a piorar de dia para dia, o gato nunca mais saiu de casa. Na madrugada anterior à morte do meu irmão, o gato miou tão desesperadamente, que o nosso impedido agarrou nele e o levou para o quartel, onde o fechou numa arrecadação, com água e comida. À tarde mandei buscá-lo, mas o rapaz apareceu-me com lágrimas nos olhos: o bichano estava morto, tal e qual o dono, que tinha morrido às 9 e um quarto da manhã. Quem sabe se morreram à mesma hora do dia 21 de Julho de 1946...

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Cresce depressa...

Chegaste com o fim do Verão,
Quando para mim já era Inverno
Mas trouxeste a Primavera

nos teus olhos "antonicos".

Cresce depressa, meu amor
Cresce depressa
Para veres os poentes e o céu azul
Detrás da nossa casa

Cresce depressa, meu amor
Cresce depressa
Para quando a lua aparecer
Atrás da serra
Te banhar a cara morena
E encher de luz a varanda.

Cresce meu amor,cresce depressa
Que eu já não tenho tempo.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Os submarinos

Não sei para que servirão os submarinos na Marinha Portuguesa. Francamente, não consigo ver para que diabo querem comprar tais bizarmas, ainda para mais tão caras...Será para que futuras batalhas navais? Não sei e, já agora, é verdade que também não me interessa. Mas quem se interessou por esse assunto há muitos anos e perguntou em casa, mais propriamente ao Pai, qual o número de submarinos que tinha a Armada portuguesa, teve uma resposta curiosa:
- Sete e um pequenino - Tal e qual.
Com o espanto nos olhos, sempre tão ávidos de saber, ficou-se por ali, acreditando piamente na resposta. Sete? Sim, porque não?
Mas o pequenino.....Só se fosse para os rios, talvez para estudar a fauna e a flora fluviais....Quem lhe dera ver esse submarino pequenino, que mais devia parecer um brinquedo!
Os anos passaram e já quase mulher feita soube que o Pai lhe tinha dado aquela resposta a brincar, por graça. Não lhe levou a mal. Afinal o Pai, sempre tão sóbrio nas conversas, tinha direito ao seu humor tão peculiar.
O seu coração generoso e crédulo estava sempre pronto para guardar todas as fantasias daquele Pai que brincava quando falava a sério.

domingo, 7 de setembro de 2008

A escritura

Ela queria o preto no branco, com assinatura e tudo, feito numa repartição pública, para lhe conferir autenticidade. Era assim que a sua cabecinha de 5 anos funcionava.
Uma escritura, era o que ela queria, e para isso perguntava com muita insistência à mãe quando é que iam ao tribunal, com a Sra. Clemência, fazer a escritura, a escritura que lhe iria dar uma avó oficial, uma avó para toda a vida, ela que não tinha conhecido nenhuma.
Quem melhor do que a Sra. Clemência, aquela velhota que tão bem lhe queria, para ser sua avó? Levava-a a correr a vila, ensinava-lhe cantigas e tinha-lhe trazido um gatinho, o "Chica Boa", para ela brincar. Só faltava mesmo a escritura!
A Mãe adiou até que pode a a data da cerimónia, mas um dia teve que lhe dizer abertamente que não era possível e tentar explicar a uma criança as legalidades insensíveis do mundo dos crescidos. O seu raciocínio infantil não pode compreender, a mágoa foi grande e o desgosto perdurou por muito tempo.
A distância separou-a dessa Avó de "faz-de-conta" e, quando ela adoeceu e a quiseram levar a visitar o Asilo, não quis ir.
Teve medo de perder outra avó e preferiu ficar com a recordação intacta da Avó de "escritura".

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Tardes do meu coração

Nunca fui de férias às Ilhas Canárias e bem gostaria de o ter feito. É mais um sonho por concretizar...
Entre as coisas que mais marcaram a minha juventude, estão as matinés do Liceu, que se realizavam periodicamente no edifício, mais propriamente na sala de Desenho, que era a maior de todas as salas de aula. Aconteciam nos dias feriados ( 1 de Dezembro e 10 de Junho) e nos anos do Reitor, a 13 de Fevereiro. Isto pode parecer estranho, dada a época que se vivia há sessenta anos, mas o meu Liceu era assim, liberal e aberto.
Como eram então as famosas matinés? Às três da tarde em ponto a sala abria, a orquestra entrava e iniciava-se o baile. Apenas podiam estar presentes os alunos, rapazes e raparigas, do 1.º ao 6º ano. Não iam familiares e também não podia entrar ninguém que não frequentasse o Liceu.
A orquestra "A Ferrugem" abria o baile sempre com a mesma música, o pasodoble "Islas Canarias", que soava como magia para os nossos ouvidos, e lá íamos nós levadas pelos nossos pares e pela melodia alegre e vibrante. Depois vinham os boleros, as valsas, os slow-fox, os sambas, eu sei lá o que mais...O tempo passava depressa e às sete horas, pontualmente, o Reitor aparecia à porta da sala; sem queixas, todos regressavam a casa.
Na alma, no coração e nos ouvidos as "Islas Canarias" ressoavam, e quero acreditar que os jovens do meu Liceu nessa noite não dormiriam, rodopiando em sonhos ao som da "Ferrugem".
Foram os tempos mais felizes da minha vida. Hoje ainda danço em sonhos e a música é sempre a mesma: "Islas Canarias"!

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

O rapaz das "écharpes"

Aparecia no café todos os dias de manhã, para tomar o pequeno-almoço, em companhia quase sempre de uma ou duas raparigas. Alto, louro, de um louro irlandês, barba de dois dias, sorriso franco, com um ar propositamente "cool" e sempre com uma "écharpe" colorida que mudava diariamente. Todas de bom gosto, grandes e de tons vivos. Na orelha esquerda, um brinco encarnado.
Supus que era aluno de algum Instituto. Risonho e com grande apetite, a avaliar pelo prazer com que comia a torrada ou o bolo. Conversava divertido e ia-se embora, para voltar na manhã seguinte.
Hoje, quando apareceu, fiquei desiludida. Vinha de "t-shirt" e calças de ganga, o que lhe dava o ar de um rapaz vulgar. Só o sorriso se mantinha.
Pode ser que no próximo Outouno volte a usar as suas lindas "écharpes" e eu volte a ver nele o príncipe que alegrava as manhãs e os corações das senhoras daquele café de uma cidade do interior.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Um homem também chora, sim senhor!

Há muitos anos, uma mulher comentava, profundamente entristecida, que nem a alegria do primeiro filho tinha podido dar ao marido, uma vez que ele já tinha filhos de outra relação.
Creio que a alegria do primeiro filho é de facto uma das maiores felicidades de que um homem e uma mulher poderão disfrutar juntos. Vem isto a propósito de alguém que, nada mais nascer-lhe o primeiro filho, quando saía do hospital para se dirigir a casa, passou pela loja de um grande amigo para lhe comunicar a alegre noticia, pedindo a seguir para ir "lá dentro". Passado algum tempo, e vendo que o amigo não regressava, o dono da loja foi "lá dentro" e deu com ele sentado num fardo de tecidos, com as maõs a tapar o rosto, chorando silenciosamente lágrimas de íntima alegria. Nada disseram um ao outro; ele ali ficou, desabafando sozinho a alegria do primeiro filho.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

A poesia

Estava combinado. Ele ia recitar uma poesia na festa de Natal do Infantário. Andou a ensaiar e estava tudo na ponta da língua. Quando o dia chegou, a avó e as tias, atrasadas, subiram a correr a rua inclinada e sentaram-se, esfalfadas, nas cadeiras duras de fórmica castanha.
Uma menina cantou " O sapo" e depois quatro meninas dançaram um "vira" mais ou menos minhoto. A seguir vinha ele: os corações bateram mais depressa, era agora. Entrou, finalmente, e o microfone foi descido à altura de pouco mais de dois palmos. Sereno, fitou a assistência e disse:
"Eu digo lá na minha casa, tá bem?"
Rodou e foi-se por onde tinha vindo. Nem mais!

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

A Ursa Maior ao alcance da mão

No Verão de 2005 ele não veio. Já tinha outros interesses, a praia mais cedo, os amigos, as saídas à noite, enfim, tudo próprio dos 17 anos. E Julho, que costumava ser "o nosso mês", passei-o sozinha. Ele preocupou-se: "A Avó vai ficar o mês só, mas não é por mal; combinei umas coisas, tá perceber, mas não é por mal." Tudo isto ao telefone, com aquela voz cheia de modulações e expressiva como nenhuma. E eu: "Está bem, não te preocupes, a avó fica bem, é o tempo que eu gosto e arranjo maneira de o passar."
E ele lá ficou, feliz, pensando que eu também ficava. E fiquei. Só de o saber a fazer o que gosta nas férias me consola, mas são tantas as recordações dos Verões passados aqui em casa, na varanda os dois, ou a vê-lo jogar futebol lá em baixo, sempre a pedir a Deus que não partissem persianas nem nenhum vidro dos carros...Quando ele cá estava, se maior fosse o dia, maior era a romaria! Os jantares na varanda, a televisão, as histórias do bisavô, e altas horas as mais inacreditáveis perguntas: "Avó, como se chamava o seu professor de Português?"
Claro que estranhei, ele fazia uma bela companhia porque se divertia e me divertia, e mesmo quando gritávamos os dois acabava tudo às gargalhadas. Para mim, esses verões foram uma terapia e penso que, mais tarde, ele também os recordará.
À noite, na varanda da cozinha, com o céu azul escuro por cima de nós, a dizer os nomes das estrelas e planetas, a adivinhar constelações, ele tinha sempre uma piada: "A Ursa Menor é filha da Ursa Maior? Que grandes ursas!" E estendia o braço para as tocar, com a ingenuidade e o humor tão próprios da idade. Ele é o Luís e eu sou a avó, e tínhamos os dois a Ursa Maior ao alcance da mão...

O baton rosa-velho

Ir a Badajoz há sessenta anos era uma aventura. Seriam, no mínimo duas etapas: primeiro ir de Portalegre a Elvas de camioneta e depois de Elvas a Badajoz de qualquer maneira.
Nesse dia, foi exactamente assim. Resolvemos ir e fomos. De Elvas para Badajoz, a viagem fez-se no carro do Virgílio, que tinha que lá ir em serviço. Trocamos os escudos por pesetas com grande lucro ( nesse tempo, um escudo comprava duas pesetas) e lá fomos, eu e a minha prima Isabel.
Fizemos as nossas compras e demo-nos ao prazer de passear pela calle de S. Juan, onde, na altura, se situavam as melhores lojas. Só as duas, felizes da vida, de compras. De tudo o que comprei, o que mais me agradou foi um tecido de seda para um vestido. Era cor-de-rosa velho, como então se dizia, com bolas brancas.
O nosso regresso foi num taxi velhíssimo, com um radio ensurdecedor e roufenho, que o motorista trazia no máximo. A recordação ainda hoje perdura, juntamente com a do caixeiro da "Alba" subindo o escadote para tirar uma garrafa de "Fundador"que lhe ficou na mão, quando verificámos que já não chegavam as pesetas e saimos a correr, envergonhadas...
Enfim, o vestido foi feito. Ficou bonito porque a Celeste se esmerou, e durou anos. Mais tarde foi transformado e chegou até ao fim dos anos sessenta.
Há dias, ao comprar um baton numa perfumaria do Colombo, a Ana disse-me: "Compre este baton rosa-velho, Mãe, faz-me lembrar um vestido dessa cor que é a minha mais remota recordação de criança"...

O Snoopy, o porquinho e o retrato

Quando foram partindo, uma a uma, deixaram qualquer coisa: um livro, um brinquedo ou retrato, que lá estão, no mesmo sítio, mudos mas falantes de saudade.
O Snoopy, o porquinho e o retrato lá estão, olhando-me e falando-me delas; à noite, quando me deito e antes de adormecer saem do seu lugar e velam o meu sono, que vem devagar e agora mais tranquilo.
Partiram, mas deixaram o Snoopy, o porquinho e o retrato. A saudade assim doi menos, porque tudo parece igual e imperturbável e assim, calada, fala docemente ao meu coração.