sábado, 20 de dezembro de 2008

A Noite das Noites

Eram duas da manhã, e a D. Ana continuava amassando as filhós, que dizia não tardariam a ficar prontas.
Tínhamos jantado tarde porque era noite de Natal. Alguns doces já se tinham comido, mas as filhós é que não havia meio.
- Dão muito trabalho - dizia ela, com a sua voz calma e arrastada- mas é só acrescentar mais um pouco de farinha e de aguardente e ficam prontas.
Eu dormitava à camilha, junto da braseira onde ardiam as brasas que vinham do fogão de lenha. As azevias de grão estavam prontas e polvilhadas com açúcar e canela.
E a conversa continuava, à mistura com pingorretas de café requentado.
Lá de dentro, de um dos quartos, veio uma voz que dizia já ser tarde e horas de dormir. A tia encostou a porta e agora falavam mais baixo.
O dia quase clareava, e as filhós continuavam no alguidar de barro vidrado.
Do Presépio, o Menino Jesus sorriu-me. Estaria Ele também à espera das filhós?

domingo, 14 de dezembro de 2008

O comunista

Por volta de 1943 ou 1944 esteve em nossa casa uma personagem à qual eu baptizei de "o comunista", de tal modo que para mim, durante muitos anos, um comunista era um homem que se vestia de castanho, usava chapéu e tinha um ar misterioso.
Esse homem chegou a nossa casa recomendado pelo meu tio Aníbal, e ficou conosco uns dois dias. Durante esse tempo, esteve quase sempre fechado com o meu pai na sala e foi de relance que o vi. Quem era? Nunca soube, apenas percebi que o tratavam por Sr. Mata. Foi-se embora como chegou, cercado de mistério e silêncio. Na manhã em que partiu levava uma pequena mala, o chapéu e o tal fato castanho. Mais tarde vim a saber que era um ferroviário militante do Partido Comunista, que estava em fuga para o estrangeiro. Se conseguiu ou não, ou se o verdadeiro nome dele era mesmo Mata, ninguém soube...

Cinema paraíso

Em garota tive pretensões a actriz, como quase todas as raparigas: copiava as roupas e os penteados das vedetas e cheguei a mandar fazer uma camisola igualzinha à que a Anne Blith vestia na capa da revista "Cena Muda"; também conseguia dar ao meu cabelo aquela queda em onda larga do lado direito, tal e qual a Veronika Lake...
Ainda cheguei a ver cinema mudo, no Cinema Royal, em Lisboa, e depois em Runa, onde o meu pai prestava serviço militar no Asilo dos Inválidos do Exército. Num barracão improvisado em sala de cinema, vi filmes da Shirley Temple e do Charlot comentados pelo projeccionista. Quantas lágrimas me fizeram chorar aquelas cenas a que os comentários emprestavam um dramatismo ingénuo, tão próprio daqueles tempos!
Mais tarde, menina e moça na minha cidade, punha o melhor vestido para ir às matinés; no Verão, o cinema era ao ar livre, em cadeiras muito duras, pelo que muitas vezes levavámos cadeiras confortáveis de casa. Nos intervalos (todos os filmes tinham intervalo), aproveitámos para conversar e catrapiscar alguém. Foi assim que vi todos os grandes filmes dos anos 30 e 40, mas recordo especialmente, pela ternura e pela ingenuidade, os filmes da série da Família Hardy, com o Mickey Rooney e a Judy Garland.
Até hoje, só a magia renovada do cinema me conseguiu transmitir o fascínio que me toca e me enche de emoção.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Saltimbancos, ou "la strada" à portuguesa

Numa feira de uma cidade de província, no final da década de 1930, um homem corpulento, de calças largas e colete, segurava uma corrente que prendia um urso castanho. O animal dançava e rebolava no chão, obedecendo à voz do dono, que lhe dizia "Dança, Mariana!"; uma mulher de pele escura, com um lenço de onde pendiam medalhas amarrado na testa, tocava pandeireta, marcando o ritmo da dança. Mais à frente, ficava a barraca dos "Robertos", os fantoches, com as suas personagens: o Zé Broa, o Diabo, A Mulher Mal Casada, o Padre, que actuavam num palco de onde pendia um pano de ramagens.
O que mais me impressionava era o número da cabra subida no gargalo de uma garrafa, não pela dificuldade, mas sim pelo animal e pelas gentes que a exibiam, gente pobre, cujo chamariz para o espectáculo era um toque de corneta, ao mesmo tempo que uma garota magrita fazia piruetas num tapete verde desbotado.
Era frequente haver anões nessas troupes de saltimbancos, e lembro-me que o meu primo Jorge uma vez fez uma tremenda birra, porque queria que a mãe levasse um desses anões para lhe dar de comer. "Assim ele crescia, mamã..."

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

O Cheiro da Cidade

Era um cheiro a humidade e a pinheiro
E também a cortiça requeimada
Vinha no vento e ficava o dia inteiro
O cheiro da minha cidade tão amada.

Agarrou-se à minha pele e perdurou
Levei-o para Sul. Quase o esqueci.
Quando voltei, ele também voltou
A esta terra donde jamais parti.

Este Natal senti-o novamente,
Manhã cedo descendo a avenida,
Tal como outrora sentia o coração.

Era o Inverno, agora mansamente,
Entrando afinal na minha vida
Como entrou, pé ante pé, a solidão.

domingo, 26 de outubro de 2008

Distraída

Disse hoje de mim para mim:
Que dia é hoje? Que mês? Que ano?
É Janeiro, oitenta e três, vinte e tantos...Suponho...
Que eu, às vezes, nem sei às quantas ando...
Mas ralar, eu não me ralo,
Porque o tempo vai passando
Mesmo que eu não queira,
O tempo vai passando
De qualquer maneira.
E se passou o tempo! Se passou...
Foram cinquenta anos já passados
E vividos, vividos a viver,
Sem amargura e sem saudade
Porque os vivi a valer.
Não tenho pena das coisas que passaram
E que não me agradaram. Já as esqueci.
As boas, essas, estão comigo
Porque as vivi.
Agora mais do que nunca quero viver
Quero dizer que sim à vida
Todo o dia, todo o mês e todo o ano.
E não me importo que digam que estou velha
Porque eu não estou
Porque eu não quero.
Fico nos cinquenta só
Mas não me esquecerei todos os anos de fazer anos
Porque eu sou distraída
E às vezes esqueço-me
Que já sou Avó!

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Pregões

Quando somos crianças, os sons musicais parece que nos entram no ouvido de tal maneira que, mais tarde, ainda os conseguimos cantar e ouvi-los distintamente naquele cantinho da memória a que eu chamo a "sala de música".
Quando eu tinha 3 anos, morava na Rua da Senhora da Glória, à Graça, e os pregões que soavam nas ruas de Lisboa eram sonoros, musicais e traziam uma melodia inesquecível, mas ao mesmo tempo simples e cheia de ternura.
Era o caso do queijo saloio, dos morangos de Sintra, e de um que só se ouvia no princípio da Primavera, que era o do homem que recolhia as cascas das ervilhas e favas e os restos das hortaliças. O pregão era assim:
"Olha a carroça, que leva as folhas, que leva as cascas!"
Só que, por mais que eu procurasse, ele não trazia nenhuma carroça, nem sequer um burro. Era ele que, simplesmente de saca às costas, recolhia os restos que os outros deitavam fora, talvez para alimentar coelhos e outros animais de criação.
A graça está na figura simbólica da carroça, que, pura e simplesmente, não existia...
Também aparecia sempre, ao fim da tarde, um outro homem que apregoava "suspiros de alimança". Isto criou lá em casa um mistério: o que seriam os "suspiros de alimança"? Suspiros sabíamos que eram os tais bolinhos que deixam na boca o sabor de uma ilusão breve que se extingue, agora a "alimança"...O que seria?
Um dia a minha Mãe ouviu com mais atenção e descobriu que o pregão completo era "Suspiros de alimão são a um tostão". Estava desvendado o mistério dos "suspiros de alimança"...

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Do mal o menos ou a história do milagre do Senhor da Piedade

Eu fui, durante anos a fio e desde muito pequena, às festas do S. Mateus, em Elvas. Por ocasião da feira, em Setembro, também se celebravam as festas do Senhor Jesus da Piedade, cuja igreja fica no recinto da Feira. A capela é muito antiga e tem um anexo chamado "a casa dos milagres", onde se guardam as promessas dos fiéis e entre braços e as pernas de cera e as fotografias, há os chamados ex-votos.
Ora entre os muitos ex-votos que cobriam as paredes, o meu pai descobriu uma pintura do século XVIII, que representava uma estrada uma carroça e um homem deitado no chão; por baixo, a seguinte inscrição:
"Milagre que o Senhor da Piedade fez a Braz António, ao qual passando-lhe uma carroça por cima, lhe partiu uma perna, podendo-lhe ter partido as duas".
Assim, tal e qual.

domingo, 28 de setembro de 2008

Dos tecidos

Há dias, passando a ferro um camiseiro ( um termo moderno para designar uma peça de roupa antiga), vi na etiqueta: ""100% viscose". Que será isto? Só o nome dá repugnância!
Quando eu era rapariga, os tecidos tinham outros nomes: percal, gorgorina, piquet, organdi, organza, opal, riscado, chita, popeline, creton, cassa, tobralco...Mais tarde, em cerimónias de casamentos, usei o tafetá, o veludo, o moirée, o crepe georgette, o gorgorão de seda e o cetim sablée, parece que me estou a ver com essas belas roupas, a desfilar nos cortejos das amigas que foram casando!

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Eleutério Barriguinhas Chambel

Nós tivemos um gato, amarelo e branco, que o meu primo Manel apanhou pequenino na estação do comboio e trouxe no bolso para nossa casa.
O gato depressa se fez um bichano gordo e simpático, e o meu irmão Lito tinha por ele um especial carinho, que, aliás, era recíproco. Apesar de ser muito reservado e tímido, o meu irmão ensinou ao gato uma série de habilidades que faziam as delícias dos nossos serões: saltava um fio posto a toda a largura de uma porta, fio esse que ia subindo em altura, tal como a fasquia do salto em altura; se não me engano, chegou aos 90 cm, o que, para um gato, era considerável. Também saltava pelo arco de bastidor (um círculo de madeira onde se punha um pano para bordar), chegando a saltar até por dentro de um aro metálico ao qual o meu irmão pegava fogo.
Por todas estas habilidades era conhecido, e a vizinhança em peso vinha ver os espectáculos do Eleutério, assim baptizado em homenagem a um atleta do Benfica. Tinha por apelido (o gato) Barriguinhas Chambel. O gato seguia o meu irmão por toda a parte e dormia à porta do quarto dele. Quando o Lito adoeceu, mudámos de casa, mas o Eleutério ficou muito habituado à antiga moradia, e fugia para lá muitas vezes. Depois, quando o Lito começou a piorar de dia para dia, o gato nunca mais saiu de casa. Na madrugada anterior à morte do meu irmão, o gato miou tão desesperadamente, que o nosso impedido agarrou nele e o levou para o quartel, onde o fechou numa arrecadação, com água e comida. À tarde mandei buscá-lo, mas o rapaz apareceu-me com lágrimas nos olhos: o bichano estava morto, tal e qual o dono, que tinha morrido às 9 e um quarto da manhã. Quem sabe se morreram à mesma hora do dia 21 de Julho de 1946...

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Cresce depressa...

Chegaste com o fim do Verão,
Quando para mim já era Inverno
Mas trouxeste a Primavera

nos teus olhos "antonicos".

Cresce depressa, meu amor
Cresce depressa
Para veres os poentes e o céu azul
Detrás da nossa casa

Cresce depressa, meu amor
Cresce depressa
Para quando a lua aparecer
Atrás da serra
Te banhar a cara morena
E encher de luz a varanda.

Cresce meu amor,cresce depressa
Que eu já não tenho tempo.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Os submarinos

Não sei para que servirão os submarinos na Marinha Portuguesa. Francamente, não consigo ver para que diabo querem comprar tais bizarmas, ainda para mais tão caras...Será para que futuras batalhas navais? Não sei e, já agora, é verdade que também não me interessa. Mas quem se interessou por esse assunto há muitos anos e perguntou em casa, mais propriamente ao Pai, qual o número de submarinos que tinha a Armada portuguesa, teve uma resposta curiosa:
- Sete e um pequenino - Tal e qual.
Com o espanto nos olhos, sempre tão ávidos de saber, ficou-se por ali, acreditando piamente na resposta. Sete? Sim, porque não?
Mas o pequenino.....Só se fosse para os rios, talvez para estudar a fauna e a flora fluviais....Quem lhe dera ver esse submarino pequenino, que mais devia parecer um brinquedo!
Os anos passaram e já quase mulher feita soube que o Pai lhe tinha dado aquela resposta a brincar, por graça. Não lhe levou a mal. Afinal o Pai, sempre tão sóbrio nas conversas, tinha direito ao seu humor tão peculiar.
O seu coração generoso e crédulo estava sempre pronto para guardar todas as fantasias daquele Pai que brincava quando falava a sério.

domingo, 7 de setembro de 2008

A escritura

Ela queria o preto no branco, com assinatura e tudo, feito numa repartição pública, para lhe conferir autenticidade. Era assim que a sua cabecinha de 5 anos funcionava.
Uma escritura, era o que ela queria, e para isso perguntava com muita insistência à mãe quando é que iam ao tribunal, com a Sra. Clemência, fazer a escritura, a escritura que lhe iria dar uma avó oficial, uma avó para toda a vida, ela que não tinha conhecido nenhuma.
Quem melhor do que a Sra. Clemência, aquela velhota que tão bem lhe queria, para ser sua avó? Levava-a a correr a vila, ensinava-lhe cantigas e tinha-lhe trazido um gatinho, o "Chica Boa", para ela brincar. Só faltava mesmo a escritura!
A Mãe adiou até que pode a a data da cerimónia, mas um dia teve que lhe dizer abertamente que não era possível e tentar explicar a uma criança as legalidades insensíveis do mundo dos crescidos. O seu raciocínio infantil não pode compreender, a mágoa foi grande e o desgosto perdurou por muito tempo.
A distância separou-a dessa Avó de "faz-de-conta" e, quando ela adoeceu e a quiseram levar a visitar o Asilo, não quis ir.
Teve medo de perder outra avó e preferiu ficar com a recordação intacta da Avó de "escritura".

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Tardes do meu coração

Nunca fui de férias às Ilhas Canárias e bem gostaria de o ter feito. É mais um sonho por concretizar...
Entre as coisas que mais marcaram a minha juventude, estão as matinés do Liceu, que se realizavam periodicamente no edifício, mais propriamente na sala de Desenho, que era a maior de todas as salas de aula. Aconteciam nos dias feriados ( 1 de Dezembro e 10 de Junho) e nos anos do Reitor, a 13 de Fevereiro. Isto pode parecer estranho, dada a época que se vivia há sessenta anos, mas o meu Liceu era assim, liberal e aberto.
Como eram então as famosas matinés? Às três da tarde em ponto a sala abria, a orquestra entrava e iniciava-se o baile. Apenas podiam estar presentes os alunos, rapazes e raparigas, do 1.º ao 6º ano. Não iam familiares e também não podia entrar ninguém que não frequentasse o Liceu.
A orquestra "A Ferrugem" abria o baile sempre com a mesma música, o pasodoble "Islas Canarias", que soava como magia para os nossos ouvidos, e lá íamos nós levadas pelos nossos pares e pela melodia alegre e vibrante. Depois vinham os boleros, as valsas, os slow-fox, os sambas, eu sei lá o que mais...O tempo passava depressa e às sete horas, pontualmente, o Reitor aparecia à porta da sala; sem queixas, todos regressavam a casa.
Na alma, no coração e nos ouvidos as "Islas Canarias" ressoavam, e quero acreditar que os jovens do meu Liceu nessa noite não dormiriam, rodopiando em sonhos ao som da "Ferrugem".
Foram os tempos mais felizes da minha vida. Hoje ainda danço em sonhos e a música é sempre a mesma: "Islas Canarias"!

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

O rapaz das "écharpes"

Aparecia no café todos os dias de manhã, para tomar o pequeno-almoço, em companhia quase sempre de uma ou duas raparigas. Alto, louro, de um louro irlandês, barba de dois dias, sorriso franco, com um ar propositamente "cool" e sempre com uma "écharpe" colorida que mudava diariamente. Todas de bom gosto, grandes e de tons vivos. Na orelha esquerda, um brinco encarnado.
Supus que era aluno de algum Instituto. Risonho e com grande apetite, a avaliar pelo prazer com que comia a torrada ou o bolo. Conversava divertido e ia-se embora, para voltar na manhã seguinte.
Hoje, quando apareceu, fiquei desiludida. Vinha de "t-shirt" e calças de ganga, o que lhe dava o ar de um rapaz vulgar. Só o sorriso se mantinha.
Pode ser que no próximo Outouno volte a usar as suas lindas "écharpes" e eu volte a ver nele o príncipe que alegrava as manhãs e os corações das senhoras daquele café de uma cidade do interior.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Um homem também chora, sim senhor!

Há muitos anos, uma mulher comentava, profundamente entristecida, que nem a alegria do primeiro filho tinha podido dar ao marido, uma vez que ele já tinha filhos de outra relação.
Creio que a alegria do primeiro filho é de facto uma das maiores felicidades de que um homem e uma mulher poderão disfrutar juntos. Vem isto a propósito de alguém que, nada mais nascer-lhe o primeiro filho, quando saía do hospital para se dirigir a casa, passou pela loja de um grande amigo para lhe comunicar a alegre noticia, pedindo a seguir para ir "lá dentro". Passado algum tempo, e vendo que o amigo não regressava, o dono da loja foi "lá dentro" e deu com ele sentado num fardo de tecidos, com as maõs a tapar o rosto, chorando silenciosamente lágrimas de íntima alegria. Nada disseram um ao outro; ele ali ficou, desabafando sozinho a alegria do primeiro filho.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

A poesia

Estava combinado. Ele ia recitar uma poesia na festa de Natal do Infantário. Andou a ensaiar e estava tudo na ponta da língua. Quando o dia chegou, a avó e as tias, atrasadas, subiram a correr a rua inclinada e sentaram-se, esfalfadas, nas cadeiras duras de fórmica castanha.
Uma menina cantou " O sapo" e depois quatro meninas dançaram um "vira" mais ou menos minhoto. A seguir vinha ele: os corações bateram mais depressa, era agora. Entrou, finalmente, e o microfone foi descido à altura de pouco mais de dois palmos. Sereno, fitou a assistência e disse:
"Eu digo lá na minha casa, tá bem?"
Rodou e foi-se por onde tinha vindo. Nem mais!

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

A Ursa Maior ao alcance da mão

No Verão de 2005 ele não veio. Já tinha outros interesses, a praia mais cedo, os amigos, as saídas à noite, enfim, tudo próprio dos 17 anos. E Julho, que costumava ser "o nosso mês", passei-o sozinha. Ele preocupou-se: "A Avó vai ficar o mês só, mas não é por mal; combinei umas coisas, tá perceber, mas não é por mal." Tudo isto ao telefone, com aquela voz cheia de modulações e expressiva como nenhuma. E eu: "Está bem, não te preocupes, a avó fica bem, é o tempo que eu gosto e arranjo maneira de o passar."
E ele lá ficou, feliz, pensando que eu também ficava. E fiquei. Só de o saber a fazer o que gosta nas férias me consola, mas são tantas as recordações dos Verões passados aqui em casa, na varanda os dois, ou a vê-lo jogar futebol lá em baixo, sempre a pedir a Deus que não partissem persianas nem nenhum vidro dos carros...Quando ele cá estava, se maior fosse o dia, maior era a romaria! Os jantares na varanda, a televisão, as histórias do bisavô, e altas horas as mais inacreditáveis perguntas: "Avó, como se chamava o seu professor de Português?"
Claro que estranhei, ele fazia uma bela companhia porque se divertia e me divertia, e mesmo quando gritávamos os dois acabava tudo às gargalhadas. Para mim, esses verões foram uma terapia e penso que, mais tarde, ele também os recordará.
À noite, na varanda da cozinha, com o céu azul escuro por cima de nós, a dizer os nomes das estrelas e planetas, a adivinhar constelações, ele tinha sempre uma piada: "A Ursa Menor é filha da Ursa Maior? Que grandes ursas!" E estendia o braço para as tocar, com a ingenuidade e o humor tão próprios da idade. Ele é o Luís e eu sou a avó, e tínhamos os dois a Ursa Maior ao alcance da mão...

O baton rosa-velho

Ir a Badajoz há sessenta anos era uma aventura. Seriam, no mínimo duas etapas: primeiro ir de Portalegre a Elvas de camioneta e depois de Elvas a Badajoz de qualquer maneira.
Nesse dia, foi exactamente assim. Resolvemos ir e fomos. De Elvas para Badajoz, a viagem fez-se no carro do Virgílio, que tinha que lá ir em serviço. Trocamos os escudos por pesetas com grande lucro ( nesse tempo, um escudo comprava duas pesetas) e lá fomos, eu e a minha prima Isabel.
Fizemos as nossas compras e demo-nos ao prazer de passear pela calle de S. Juan, onde, na altura, se situavam as melhores lojas. Só as duas, felizes da vida, de compras. De tudo o que comprei, o que mais me agradou foi um tecido de seda para um vestido. Era cor-de-rosa velho, como então se dizia, com bolas brancas.
O nosso regresso foi num taxi velhíssimo, com um radio ensurdecedor e roufenho, que o motorista trazia no máximo. A recordação ainda hoje perdura, juntamente com a do caixeiro da "Alba" subindo o escadote para tirar uma garrafa de "Fundador"que lhe ficou na mão, quando verificámos que já não chegavam as pesetas e saimos a correr, envergonhadas...
Enfim, o vestido foi feito. Ficou bonito porque a Celeste se esmerou, e durou anos. Mais tarde foi transformado e chegou até ao fim dos anos sessenta.
Há dias, ao comprar um baton numa perfumaria do Colombo, a Ana disse-me: "Compre este baton rosa-velho, Mãe, faz-me lembrar um vestido dessa cor que é a minha mais remota recordação de criança"...

O Snoopy, o porquinho e o retrato

Quando foram partindo, uma a uma, deixaram qualquer coisa: um livro, um brinquedo ou retrato, que lá estão, no mesmo sítio, mudos mas falantes de saudade.
O Snoopy, o porquinho e o retrato lá estão, olhando-me e falando-me delas; à noite, quando me deito e antes de adormecer saem do seu lugar e velam o meu sono, que vem devagar e agora mais tranquilo.
Partiram, mas deixaram o Snoopy, o porquinho e o retrato. A saudade assim doi menos, porque tudo parece igual e imperturbável e assim, calada, fala docemente ao meu coração.

domingo, 31 de agosto de 2008

O amor nunca é demais

Há anos, em conversa com uma pessoa com a qual viajava várias vezes e falando de crianças e de filhos pequenos, esse alguém dizia que não tinha habituado os filhos a mimos. Por mimos ele entendia fazer pequenas vontades, trazer prendas na volta de alguma viagem, enfim...Nada de concessões, que a gente pequena é abusadora e tem que ser tratada com rigor! Nem mesmo pelo Natal, dizia ele, gastava dinheiro com elas, as suas crianças. Só uns chocolates, e mesmo assim era a mulher que os comprava.
Eu ouvi, não concordei mas não fiz comentários. Lembrei-me deste episódio quando, em mais um Natal, voltei a ver nos olhos dos meus netos aquela alegria irreprimível com que sempre desembrulham os presentes, isto quando o o Pai Natal é o próprio Pai e Tio...
A capacidade de amar está, para mim, na razão directa do afecto que se recebeu algum dia. Não constitui decerto uma regra, mas a minha experiência diz-me que muitas vezes assim sucede. Não será o grande amor que recebi na minha infância que me faz hoje ter forças e coragem? Não será, ainda ele, que me faz amar tão profundamente todos os meus? Todo o amor que se dá tem retorno algum dia, mesmo depois de já cá não estarmos, na forma como somos recordados.


P.S. É através dos olhos dos meus netos que eu vejo o futuro.

O velho campino

O tio António Tito era o marido da tia Engrácia. Era um homem alto e magro, de feições marcadas pelos anos e pelas intempéries. Nasceu em Benavente e foi maioral de touros de lide, numa grande casa agrícola do Ribatejo. Amava a sua profissão e contou-me que dormia com o gado ao relento, na lezíria. Foi campino, daqueles de barrete verde e colete encarnado, e falava das largadas em Vila Franca com lágrimas nos olhos, saudoso desse tempo, ele que veio depois para o Alentejo e por cá ficou, guardando outro gado e servindo outro patrão.
Quando se reformou, dedicou-se à arte de talhar em cortiça e em madeira e fez objectos que expunha em feiras e mostras de artesanato.
Disse-me um dia, já no fim da vida: " Sobrinha, o tempo em que cavalgava pela lezíria atrás dos touros, foi o tempo mais feliz da minha vida".

Psicoterapia

O Pavilhão de Psiquiatria fica mesmo em frente à minha casa. Tem gente internada, que pouco se vê, salvo quando dão passeios em grupo, acompanhados dos vigilantes, aqui pelas redondezas.
Há dias, à tarde, pela hora da visita, um homem de meia idade despedia-se da mulher (suponho que o fosse), à porta do Pavilhão. Ela ficou acenando e o homem foi sempre olhando para trás, também fazendo adeus. Já quase ao pé do portão, parou e mandou-lhe um beijo na ponta dos dedos e assim foi andando até deixar de a ver, rua abaixo enxugando os olhos.
O Pavilhão de Psiquiatria pareceu-me um sítio mais bonito nessa tarde de Verão e o homem de meia idade encheu-me o coração de ternura.

Os gloriosos dias da marmelada

Talvez seja só imaginação, mas quando eu era criança o Outono tinha mais dias de sol que o de hoje. Se não fosse assim, por que se punham então ao sol as tigelas de marmelada tapadas com papel de seda? Tinha que haver sol, e sol bem quente, disso não tenho dúvidas!
Era um alarido naquela cozinha. Tachos por todo o lado, o fogão com o máximo de lenha e, principalmente, o cheiro do açúcar em ponto e a fila de tigelas de louça de Sacavém ainda vazias, prontas para receber aquele creme cor de âmbar, fumegante e cheiroso.
Depois era a geleia que, para atingir o ponto ideal, levava a tarde toda, e havia turnos para a mexer com a colher de pau. O raspar dos tachos pertencia-me e ao meu Pai, os dois gulosos da casa.
Guardo a recordação de tudo isto, juntamente com os sabores e os cheiros da minha cozinha, naqueles gloriosos dias da marmelada.
"Menina, não venhas para a cozinha, que levas lá para dentro os sapatos todos sujos..."