domingo, 31 de agosto de 2008

O amor nunca é demais

Há anos, em conversa com uma pessoa com a qual viajava várias vezes e falando de crianças e de filhos pequenos, esse alguém dizia que não tinha habituado os filhos a mimos. Por mimos ele entendia fazer pequenas vontades, trazer prendas na volta de alguma viagem, enfim...Nada de concessões, que a gente pequena é abusadora e tem que ser tratada com rigor! Nem mesmo pelo Natal, dizia ele, gastava dinheiro com elas, as suas crianças. Só uns chocolates, e mesmo assim era a mulher que os comprava.
Eu ouvi, não concordei mas não fiz comentários. Lembrei-me deste episódio quando, em mais um Natal, voltei a ver nos olhos dos meus netos aquela alegria irreprimível com que sempre desembrulham os presentes, isto quando o o Pai Natal é o próprio Pai e Tio...
A capacidade de amar está, para mim, na razão directa do afecto que se recebeu algum dia. Não constitui decerto uma regra, mas a minha experiência diz-me que muitas vezes assim sucede. Não será o grande amor que recebi na minha infância que me faz hoje ter forças e coragem? Não será, ainda ele, que me faz amar tão profundamente todos os meus? Todo o amor que se dá tem retorno algum dia, mesmo depois de já cá não estarmos, na forma como somos recordados.


P.S. É através dos olhos dos meus netos que eu vejo o futuro.

O velho campino

O tio António Tito era o marido da tia Engrácia. Era um homem alto e magro, de feições marcadas pelos anos e pelas intempéries. Nasceu em Benavente e foi maioral de touros de lide, numa grande casa agrícola do Ribatejo. Amava a sua profissão e contou-me que dormia com o gado ao relento, na lezíria. Foi campino, daqueles de barrete verde e colete encarnado, e falava das largadas em Vila Franca com lágrimas nos olhos, saudoso desse tempo, ele que veio depois para o Alentejo e por cá ficou, guardando outro gado e servindo outro patrão.
Quando se reformou, dedicou-se à arte de talhar em cortiça e em madeira e fez objectos que expunha em feiras e mostras de artesanato.
Disse-me um dia, já no fim da vida: " Sobrinha, o tempo em que cavalgava pela lezíria atrás dos touros, foi o tempo mais feliz da minha vida".

Psicoterapia

O Pavilhão de Psiquiatria fica mesmo em frente à minha casa. Tem gente internada, que pouco se vê, salvo quando dão passeios em grupo, acompanhados dos vigilantes, aqui pelas redondezas.
Há dias, à tarde, pela hora da visita, um homem de meia idade despedia-se da mulher (suponho que o fosse), à porta do Pavilhão. Ela ficou acenando e o homem foi sempre olhando para trás, também fazendo adeus. Já quase ao pé do portão, parou e mandou-lhe um beijo na ponta dos dedos e assim foi andando até deixar de a ver, rua abaixo enxugando os olhos.
O Pavilhão de Psiquiatria pareceu-me um sítio mais bonito nessa tarde de Verão e o homem de meia idade encheu-me o coração de ternura.

Os gloriosos dias da marmelada

Talvez seja só imaginação, mas quando eu era criança o Outono tinha mais dias de sol que o de hoje. Se não fosse assim, por que se punham então ao sol as tigelas de marmelada tapadas com papel de seda? Tinha que haver sol, e sol bem quente, disso não tenho dúvidas!
Era um alarido naquela cozinha. Tachos por todo o lado, o fogão com o máximo de lenha e, principalmente, o cheiro do açúcar em ponto e a fila de tigelas de louça de Sacavém ainda vazias, prontas para receber aquele creme cor de âmbar, fumegante e cheiroso.
Depois era a geleia que, para atingir o ponto ideal, levava a tarde toda, e havia turnos para a mexer com a colher de pau. O raspar dos tachos pertencia-me e ao meu Pai, os dois gulosos da casa.
Guardo a recordação de tudo isto, juntamente com os sabores e os cheiros da minha cozinha, naqueles gloriosos dias da marmelada.
"Menina, não venhas para a cozinha, que levas lá para dentro os sapatos todos sujos..."