domingo, 31 de maio de 2009

Lembro-me - 1ª parte

Lembro-me da "aurora boreal" no fim dos anos 30;
Lembro-me das cadernetas de racionamento de açúcar durante a 2ª Guerra Mundial;
Lembro-me de um ovo custar 40 centavos;
Lembro-me do toque de alvorada no Castelo de S. Jorge;
Lembro-me dos presos políticos à porta do Governo Civil;
Lembro-me de um concurso hípico em que o meu pai ganhou uma taça;
Lembro-me de ter lido Florbela Espanca pela primeira vez, aos 18 anos;
Lembro-me de desmaiar quando provei o meu vestido de noiva durante 4 horas;
Lembro-me de comer ameixas verdes à porta da minha escola;
Lembro-me da missa dita em latim.

Amor a quanto obrigas...

Ele estava completamente apaixonado e não conseguia esconder de niguém a atracção que aquela mulher de rosto de boneca exercia sobre ele.
Seguia-a por todo o lado: ao mercado, à escola, à missa, eu sei lá...Até que uma vez, num baile, achou que era chegado o momento ideal para entabular conversa; até aí, ela fingira sempre não dar por ele, mas agora ele estava decidido: era a altura certa e ela não escaparia. Não se atreveu a convidá-la para dançar, isso era audácia demasiada, para mais em público. Esperou na antecâmara da sala de baile, talvez ela passasse por ali. Talvez...
E ei-la que aparece, na sua beleza de arrepiar. Ele encheu o peito de ar: era agora. Mas ela dirigiu-se aos lavabos; quando sair, pensou ele. Disfarçadamente, benzeu-se. Tinha que ser, agora ou nunca. Ela saiu dos lavabos e ele avançou:
- Com que então uma mijinha?- foi a única coisa que conseguiu dizer-lhe.
Casaram passados alguns meses.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Os porquês

Ela tinha oito anos e queria saber tudo. Perguntava porque é que a noite era escura, porque é que às vezes a chama se apagava com um sopro e, noutros casos, quando se soprava ainda ficava mais viva. Queria saber para onde vão os dias que passam.
Um dia esteve muito tempo deitada no chão, de barriga para baixo, a ler uma revista, e a Mãe foi ver o que é que a interessava tanto.
O assunto era "De Gaulle e o Mercado Comum". Ela tinha oito anos.

Feiras e rifas

As feiras da minha cidade eram um regalo para mim. Na feira de Setembro estava de férias e podia passar o dia na retouça: carrosseis, Poço da Morte, Casa Rolante, comer massa frita, torrão e os chupa-chupas do velho Sebastião. Em Junho, a Feira das Cerejas também servia de desculpa para faltar a uma aula ou outra.
Quando andava ainda na escola primária, fui duas ou três noites à feira com o meu irmão, que era oito anos mais velho que eu. Havia sempre uma barraca que fazia rifas de panelas de alumínio e numa noite saiu-nos o trem de panelas completo (umas dez peças, entre panelas e tachos). Como era de noite e ninguém o via, o meu irmão acedeu trazer uma ou duas panelas e o resto trouxe eu até casa. A família achou graça, até porque fazia falta renovar a cozinha. ´
Voltámos na noite seguinte, a última noite da feira; a barraca dos alumínios continuava com as rifas, mas as panelas tinham esgotado. Para rifar ("é a última noite, senhoras e senhores, é a última noite!") tinham um galo, um nobre representante dos galináceos, de penas vermelhas e grande crista. Diz-me o meu irmão:
- Vou comprar rifas.
- E se nos sai o galo? - respondi eu.
- Logo se vê.
E não é que saiu mesmo?
A nossa casa era ainda distante do recinto da feira. Durante o trajecto, eu vinha com o galo ( que tinha as patas atadas) ao colo, e o meu irmão uns metros à minha frente. O galo cacarejava, batia as asas, e com as unhas arranhou-me as mãos. Naquela altura foi penoso, mas hoje divirto-me a pensar nesta história. O galo foi para a capoeira e passados uns tempos foi para a panela, mas ninguém o conseguiu comer, de duro que era, apesar de ter estado um dia inteiro ao lume.

domingo, 17 de maio de 2009

Voto secreto

Numas eleições já há muitos anos, ele foi com a Mãe, que ia votar, à Assembleia de voto. Insistiu que queria ir e foi, com a condição de não dizer nada. Prometeu. Quando cumprido o seu dever cívico, a Mãe apresentou o boletim de voto na mesa, e diz ele:
- Então, lá votaste na Maria Pintassilga!

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Quim Mamão e C.ª

No velho prédio da rua em frente à minha, morava o vizinho "Bodanego", sapateiro de profissão. A oficina era esconsa, suja e com uns fundos misteriosos, que desafiavam a minha imaginação. Ora esse sapateiro tinha um filho, o Quim, que era especialista naquilo a que hoje se chamaria "prestação de serviços": electricistista, inventor, sapateiro, canalizador, investigador, cientista, organizador de eventos...
O Quim tinha um amigo, o Martinho, que com ele trabalhava nos tais fundos misteriosos da oficina. Ali experimentavam inventos, fabricavam pomadas e "pózinhos de perlim-pim-pim". A pomada era a famosa pomada "Estrela", que engraxava sapatos, polia móveis e até dava resultado nas dores reumáticas. Deslocavam-se a domicílio e o Quim algumas vezes consertou canos entupidos, avarias eléctricas e montou ratoeiras na minha casa. Pelo Carnaval, a dupla pregava partidas às pessoas que por ali passavam, vindas das freguesias mais distantes, atando notas de vinte escudos a um fio de coco que puxavam, quando alguém se baixava para as apanhar, entre grandes gargalhadas.
Para além de tudo isto, o Quim ajudava umas senhoras solteironas, feiotas e ricas, a fazer festas e bailes: contratava músicos (acordeonistas), encomendava a comida, contratava os criados de mesa, e depois da festa, ele próprio fazia a limpeza. A parte eléctrica da festa também era com ele: lâmpadas de maior voltagem, jogos de luzes na sala, enfim, tudo lhe saía das mãos e daquela cabeça imaginativa e louca. Às vezes rebentavam fusíveis e havia curto-circuitos, que geravam o pânico entre os convidados e as donas da casa, que imediatamente chamavam o Quim. O Quim, aliás, estava logo ali à esquina (era ele que desligava o quadro eléctrico que estava no patamar), pronto para salvar a festa.
O que é facto é que as duas senhoras arranjaram maridos nessas festas e o Quim muito contribuiu para isso.